terça-feira, 10 de dezembro de 2019

ECUADOR - VULCÕES ANDINOS


ECUADOR

Equador foi uma viagem que surgiu de repente com meu amigo Pablo do trail run me mostrando uma promoção de passagens, tentamos armar uma trip que pudéssemos ir juntos, ele queria ir no feriado de 15 de novembro e eu queria ir logo depois. Sem problemas, decidimos por datas diferentes. A decisão e a compra dessa passagem foi pouco antes da minha expedição para a Islândia, sendo assim, decidi ir mas todo o planejamento ficou adormecido até eu retornar. Achava que Pablo indo antes ia me dar todo o caminho das pedras, literalmente no caso, mas não rolou, ele não pôde ir por compromissos profissionais. Entao assim que voltei do país do gelo comecei a planejar e descobrir o que me esperava nessa altura da Cordilheira dos Andes.
Tive boas e más surpresas ao começar a investigar, vi que haviam uma boa diversidade de montanhas e vulcões ao redor de Quito, que eu poderia chegar a elas de carro, tendo boa liberdade de planejamento, mas infelizmente os grandes vulcões que haviam glaciares no topo já fazia alguns anos que eram proibidos pelo governo de tentar subidas sem um guia. Essa questão das normas de montanhas é no mínimo muito polemica, é obvio que um glaciar a 5.500mts de altitude é muito perigoso para quem não conhece, mas qual a taxa de acidentes? O que levou o governo a tomar essa decisão? As mortes na montanha foram realmente por irresponsabilidade e poderiam ser evitadas com o acompanhamento de um guia? Eu acho que tenho uma veia mais exploradora, gosto quando não encontro ninguém na montanha, fico sempre pensando nos primeiros que resolveram explorar aquele território, não haviam guias, não havia nada, apenas o homem e o caminho que ele quisesse, muitas vezes me sentia assim, por mais que voce estude uma trilha em alta montanha por gps e fotos de satélite, nada é igual ao ver a rocha de perto, ao ver a parede que se forma e como voce vai fazer para vencer aquele caminho, na parte final, perto do cume, normalmente não existem muitas indicações, isso porque ou a natureza muda o caminho de tempos em tempos ou simplesmente porque existe mais de um, um deles é melhor, mas nada impede que voce escolha outro, não sei, não me agrada muito todas essas normas, que tira o ar de desafio sem dúvida tira, mas talvez seja o preco a pagar pela democratização da montanha.
Enfim, sendo assim, decidi fazer meus planos para as montanhas mais baixas sem glaciares no topo, poderia chegar por volta dos 5mil ao que parecia sem maiores problemas bem ao estilo trail running, achei uns 5 picos a explorar e me parecia estar ótimo, mais uma nova experiencia, em altitude, em um novo canto do mundo. Caso as coisas fluíssem bem e eu acabasse fazendo alguns contatos, tentaria alguma subida de alta montanha num bom grupo e pagaria minha permissão para tal, por volta de 400 dólares.

18/11/2019 – DIA 1 – Pichincha

Cheguei por volta de meia noite ao aeroporto de Quito, de cara o funcionário da locadora apesar de muito simpático já demonstrava que estávamos em um país latino-americano, as maquinas de cartão não funcionavam, taxas obscuras a serem cobradas, enfim, consegui sair do aeroporto as 2 da manhã em direção ao hostel. O plano sempre duvidoso era já correr no primeiro dia, mas não sabia como meu corpo iria reagir após acordar a 3mil metros, tendo dormido tão pouco e ainda ter que subir a quase 5 mil no primeiro dia, so conseguia pensar em como passei mal no Aconcágua, na primeira vez, que no 3º dia de montanha corri a 5500mts e voltei a 4200m, no outro dia estava destruído.
De qualquer forma acordei as 7 da manhã com apenas umas 4 horas de sono e me sentia bem, tomei meu café e parti para a montanha na região urbana de Quito, o vulcão Pichincha. Dotado de 2 cumes, a escalada nesse vulcão pode ser feito desde a base no nível da cidade, ou tomando um teleférico até 4mil metros, percebi que a região era uma boa área de treino explorada pelos locais com muitas trilhas, mas para ganhar tempo e prevenir o pouco sono, resolvi começar dos 4mil, afinal, eram 4 mil metros e ontem estava passeando em um shopping em São Paulo. Cheguei, parei o carro, preparei minha mochila com toda linha de equipamentos que podia precisar, a todo tempo ficava repetindo que era alta montanha, que coisas sérias poderiam acontecer, se eu não me policiasse poderia confundir facilmente com um treino no Mestre Álvaro e algo sério poderia acontecer. A subida no teleférico foi super agradável, comecei a ver a extensão da cidade de Quito que ia ficando em meu panorama, e começar a ver toda a extensão majestosa dos Andes, pronto, sangue de montanha começou a correr nas veias, estava ansioso para subir e ver como meu corpo reagiria. Quando cheguei, alguns turistas, muito poucos, era segunda feira, e comecei meu trote como quem não quer nada, e subitamente já vi a imensidão da formação da cordilheira com seu cume, o meu do dia, ainda encoberto.
A inclinação era constante, o terreno propicio, vegetação aberta e podia render bem, exceto pela altitude que me fazia sofrer, passei um grupo de pessoas de caminhada, eu tambem caminhava, mas normalmente naquela inclinação passaria muito mais rápido, me tomou certo esforço deixá-los para trás e logo adiante vi uma mulher, minha faixa etária, parecia em forma, mas de calca de ginastica, tênis urbanos e carregava apenas a garrafa de agua nas mãos, percebi todos os detalhes porque tive a chance de observar por horas, apesar de ter me aproximado não conseguia ultrapassar ela, sem dúvida a altitude me pegava, notei os cabelos escuros dela e tentava me desculpar, “ela com certeza é local e está super acostumada com a altitude”, assim segui, aos poucos deixava para trás um céu azul com algumas nuvens e mirava a todo tempo um cume de rocha negra com nuvens pesadas e escuras. Me lembro de gostar muito da sensação, se estivesse naquele momento a 2mil metros, seria divertido, seria bom ter um lugar como aquele com tantas trilhas para correr, mas já estar a 4500 metros dava um toque todo especial, eu podia sentir o peso da altitude, mas ao mesmo estar leve, estar em segurança, sem sofrimento exagerado, curtia aquele momento como curti a subida a 5500m no Aconcágua como falei, lá eu paguei um preço altíssimo por ela, aqui, queria acreditar que não, que eu iria retornar para uma cama, um chuveiro, um restaurante, tudo a 3mil metros e que amanhã estaria zerado. Assim segui em frente, com a suposta equatoriana na minha visão. Poucos metros à frente via um ridge line que ia em direção reta para o cume, venci a primeira escalaminhada de pedra e começava um drama, o tempo fechou, ficou um pouco escuro, neblina e todas as pedras negras com aquele tom ainda mais escuro molhado, e consequentemente escorregadio. O ridge fazia uma serie de uns 3 calombos de 10 metros na montanha e teria que passar por eles, já no primeiro dia, já naquelas condições. É impressionante como o clima não só torna as condições mais perigosas mas como aterrorizantes, cada pisada naquela pedra parecia que tudo ia me levar a um escorregão, não dava para prever o que ia acontecer, e de qualquer forma, uma semente, um pensamento ali guardado estava na minha cabeça o dia todo, e se eu estivesse exagerando na altitude e amanhã acordasse mal? Decidi voltar, até porque voltar não era desistir, era simplesmente tomar a linha de flanco nas costas da montanha e seguir com menos inclinação em direção ao cume. A caminhada pelo flanco foi na verdade muito inclinada, mais alguns metros e encontrei minha suposta companheira equatoriana, um grupo de trail runners que vinha descendo fora da linha da trilha em inclinação máxima e se divertindo, pena que não estava no mesmo momento para curtir com eles, e sempre à minha esquerda o ridge line que havia abandonado e o pensamento de como teria sido ter feito ele, se a primeira desistência levaria a outras nos outros dias. Um pouco de potência em terreno melhor e rapidamente cheguei ao cume. Eu sabia que esse era o primeiro cume do dia, havia outro mais montanha adentro, a real cratera do vulcão, mas dando uma parada e conversando com a suposta equatoriana, descobri que se chamava Juliana e de verdade era da região, já havia feito todos os cumes dos vulcões nos últimos dias e aquele era o seu último, ou seja, apesar das vestimentas casuais estava com a bagagem completa. Na conversa descobri que o próximo cume tinha a mesma altitude em que estava, mas com uma subida e nova descida, dobrando para ir e voltar, analisei e novamente a lembrança e a preocupação do efeito no dia seguinte me fizeram voltar. Fiquei tranquilo, não era uma desistência, era um respeito, 4 horas de sono, 4700mts de altitude no primeiro dia e 4 horas na montanha tava bom para um belo aquecimento e recepção de boas vindas. A volta não foi de imediato, sentei, tomei meu clássico vinho, um sanduiche de uma mercearia vizinha ao hostel e dividi alguns 30 minutos com 2 aves de rapina que ficavam tranquilamente ali, logo que ouviram o barulho do plástico do sanduiche se aproximaram e percebi que estavam acostumadas a ganhar quitutes dos montanhistas. Relaxado, feliz, apesar de quase nenhuma vista do que tinha conquistado já que a neblina se formava de forma densa, já começava a ameaçar uma chuva quando um casal chegava ao cume pelo ridge line, era um guia e uma turista com equipamento de escalada, de cara me veio o pensamento da controversa exploração comercial, versus a real experiencia, enfim já estive daquele lado quando subi meus 5800mts pela primeira vez em um vulcão no Atacama, tambem sendo guiado. Cumprimentei eles, trocamos fotos, eu tirei deles e vice versa, e resolvi que era hora de descer. Resolvi descer com alegria nas pernas, consistente e rápido, a descida seria longa, estava feliz. Bom, e assim foi, depois de um começo muito inclinado, minhas pernas queimavam e falhavam um pouco quando firmavam no chão, não era fraqueza, era a falta do oxigênio, do combustível, lembrei de como meus companheiros de corrida desciam feliz, é impressionante a diferença gigante que eu morando a beira mar tenho dos que moram nos alpes ou nos andes, mas não reclamo, mesmo eles, muito deles, sofrem com o mal da altitude e eu por alguma razão que não sei explicar não sofro, apenas tenho reações esperadas que com um par de dias iriam se normalizar, minha cabeça não doía, meu pulmão não apertava, encaixei um ritmo cheguei a parte que diminuía a inclinação e ai o terreno perfeito me deixava inclinar o corpo pra frente e descer melhor, bastava uns 10 minutos assim e me faltava o oxigênio, pernas sem combustível, caminhava por uns 100 metros para recuperar o folego e pendurava o corpo pra frente iniciando uma nova série. Pouco depois lá estava eu no teleférico, olhei para trás não se via nada, a montanha já estava totalmente escondida na neblina espessa, o ar estava pesado já aos 4 mil e começava a chover fino, não me importei, achei um canto e sentei um pouco para aproveitar a sensação boa que corria em mim. Fiquei grato pelo primeiro dia, de não me sentir mal, um pouco com medo da reação no dia seguinte já que cheguei da mesma forma a tenda médica no episódio do Aconcágua mas estava confiante que hoje não havia feito exagero. Tomei meu teleférico, o carro e rapidamente estava no hostel. Que diferença, poder tomar um banho, deitar em meio a cobertas numa cama, terminar o resto do vinho que tinha sobrado na garrafa da corrida do dia e descansar uns minutos antes de sair e comer algo quente e fresco. Estava iniciada a expedição pela linha central da Terra, o Equador.

DIA 19 - FUYA FUYA

Esse foi um daqueles dias pobres em visibilidade, mas em trilha, de tirar o folego, sem dúvida foi um daqueles dias que ficarão sempre voltando no pensamento, sempre me impressiono em como a natureza consegue encontrar o seu balanço para tornar todo dia imerso nela especial de alguma forma. Vamos explicar melhor isso tudo.
Levantei cedo, 5 e pouco da manhã, tinha ido dormir muito cedo por volta das 9 da noite, daquele jeito apagado, durante o dia achei que a altitude poderia estar fazendo efeito, mas da forma como apaguei foi sem dúvida a correria de chegar de madrugada e já correr de manhã. Bom, acordei, e fiz minhas obrigações com a loja, é ruim porque sempre trabalho olhando para o relógio não querendo demorar, mas ao mesmo tempo traz uma boa satisfação ser possível cumprir com meus compromissos mesmo a distância, importante, afinal eu sou o meu próprio patrocinador. Demorei um pouco e só consegui liberar do trabalho e de tomar café da manhã já eram 9 horas da manhã. Não tem muito o que fazer, essa expedição tem tido um cronograma tranquilo e prefiro não me preocupar. Consegui pegar a estrada eram umas 10 horas, estrada mesmo demorou um pouco pelo transito da caótica cidade de Quito, me peguei pensando quando eu for aos Himalaias, enfrentar o caos e poluição de Katmandu, tão o oposto da solidão das montanhas, sempre me pergunto o quanto isso “estraga” a festa, me lembrei das estradas do EUA, que só dirigir já era um show. Segui pela estrada, e lá pelas 11:30 sai da principal para tomar a estrada que me levaria a Laguna Locanda, o gps dizia 50 minutos para um trecho de pouco menos 20km, pensei que não era possível, mas era. A estrada era um amontoado de pedras e nesses 20km subíamos cerca de 800 metros, então subida todo o tempo, e lá estava eu em um velho chevrolet, com mais de 120mil km rodados, eu sá pensava se ele ia aguentar, mas ai pensei que esses carros pequenos e levinhos aguentam bem um tranco, só não contava com a falta de força, em um certo momento engatava a primeira marcha, soltava o freio de mão e acelerava tudo, o carro simplesmente não tinha forças para subir, não patinava, não atolava, nada, simplesmente morria sem forças. Fiquei preocupado, chegue a olhar o google maps para ver quanto de altimetria ainda tinha, parecia que estava analisando como se fosse correr, mas era pra saber se o carro ia aguentar. Vi que ficava mais tranquilo adiante e depois de breves descansos para recuperar o folego conseguimos subir, nossa como me lembrei de Taiwan, eu de scooter a 3000m de altitude, agora a 4000m com um carrito mínimo, qual seria a próxima?
Quando alcançamos o ponto mais alto, tinha um mirante e logo depois uma curta e inclinada descida para a lagoa. Parei, tirei foto, fiz vídeo, comemorei junto com o carro, foi como sair para correr montanha com alguém inexperiente e que quando alcança o objetivo voce elogia, e comemora, que doidera.
Desci, cheguei a um local onde sabia que existia uma mínima estrutura, logo que parei um guarda veio ao meu encontro, Jose, e expliquei que queria passar a noite ali, ele me perguntou se eu ia acampar mas de pronto disse que não, perguntei se tinha como ficar em  uma das cabanas, ele me respondeu que não havia ninguém, que durante a semana é absolutamente deserto, mas que eu poderia ficar. Achei incrível o lugar, quiosques de fazer churrasco, me veio na hora o pensamento de porque não comprei a truta fresca no supermercado quando parei na estrada, seria incrível comer ela na brasa depois da corrida. Por falar em comida perguntei ao Jose se havia alguma comida, ele disse que não, que era só ele, sem comida, sem eletricidade, apenas a natureza.
Sem problema nenhum, me arrumei rápido e sai para correr, estava um pouco confuso com a trilha que montei e o que o mapa mostrava, como não tinha internet não conseguia ver mais detalhes do mapa, realizei que deveria ter estudado um pouco melhor o local. Enfim, saí para a trilha e o objetivo principal era o ponto mais alto, o Fuya Fuya com quase 4.300mts. Quando saí já eram 13hs e pouco, tarde, mas a corrida parecia mais fácil, a trilha desenhada tinha 22km e já sabia que não ia fazer tudo, queria ir ao cume e voltar, estava bom. Saí pela trilha que desenhei que me levou a um rasga mato horrível, tinha uma trilha, mas estava fechada com o tempo, e o capim era daquele tipo Elefante que tem na Serra Fina, minhas pernas ardiam ao mesmo tempo que novas arranhadas tomava. Depois de uns 20 minutos percebi que não tinha como e subi para o estradão, resolvi chegar rápido ao outro lado da lagoa de onde começava a escalada para o cume. Tudo certo, fui pensando no caminho se o carro aguentaria aquele estradão para chegar ao outro lado e tomar a outra estrada no outro dia o que me levaria mais rápido ao próximo destino, umas duas subidas íngremes em zig zag com buracos e lama e acho que não seria possível. Voltando ao ponto do início da trilha para o cume, entrei e comecei a subida, tinha visto na placa que era uma trilha de MTB tambem, fiquei um pouco mais tranquilo pensando que seria bem aberta, so não contava que o piso seria aquele de terra preta, o mesmo lá da Serra Fina que lembrei, aquele que todo mundo escorrega numa inclinação pior, pois é, eu tinha 600mts de subida em menos de 2km nesse terreno, duro demais.
É incrível como voce percorre todos os cantos do mundo mas as semelhanças estão a todo tempo, enquanto olhava o terreno me lembrava da Serra Fina, quando olhava pra cima, as montanhas com névoa, me lembrava da Escócia, e por aí vão os detalhes em comum de todos cantos do mundo. A subida não estava fácil, novamente sentia um pouco a altitude, mas menos que ontem, acho que a boa noite de descanso estava me ajudando. À medida que fui subindo, infelizmente o dia avançava e a chuva se armava, foi como no dia anterior, quando eram 15hs ela começou de verdade, me faltavam ainda uns 300mts e estava frio, coloquei o casaco. Chuva fina e depois de uma parede final que com certeza tinha no mínimo uns 25% de inclinação cheguei ao ridge line onde deveria percorrer até chegar no cume. Caprichosamente nesse momento começa a chuva mais forte, minhas mãos começam a ficar muito geladas, faltavam 300 metros de crista para o cume e decidir seguir forte até que esbarrei numa parede de pedra, vi que a parte final era apenas pedra exposta e teria que escalar. Deixei meus bastões no chão e fui para vencer a primeira parede, tinha apenas uns 5 metros, para mim, corredor, isso não é fácil, some a isso o frio sem sentir os dedos e a chuva que deixava cada pegada perigosa e está feita a formula do cume, sempre fica mais difícil na parte final. Depois que venci essa parede, já estava vendo que depois tambem ia ser complicado, mas decidi não desistir de cara, parede vencida e a trilha fazia um flanco pela lateral da pedra para uma pequena descida e entao chegar na pedra seguinte do cume. Só que este flanco pela lateral era literalmente na beira de um abismo, a queda era de no mínimo uns 40 metros e a curva para voltar para a crista era exposta e tinha uns 40cm de largura. De jeito nenhum, o local aonde estava já era exposto, já estava preocupado com a parede que ia ter que descer para voltar, sem chances, já me agarrava na posição onde estava imagina seguir desse jeito, imagina voltar, sem chances de fazer sozinho naquelas condições.
Voltei tranquilo, sofri muito para descer a parede como eu esperava, não tinha pegada na parte final, e a base embaixo tinham 2 pedras grandes, não dava pra saltar, podia me machucar feio, consegui pegar a última agarra possível, não sentia as pontas dos meus dedos mas mesmo assim contraía todos os músculos da mão a fim de dar forças às pontas dos dedos para manter a agarra, desci meu corpo e com os braços já estendidos, pendurado, arrisquei o salto, apenas uns 2 metros, mas consegui aterrissar em segurança, parecia uma cravada de ginastica olímpica, so faltou eu levantar os braços e dizer, pronto, estou a salvo, agora é so descer.
Depois de percorrer os 300 metros de crista que me levavam de volta ao início da descida, verifiquei no mapa que era possível fazer o cume da pedra vizinha, poucos 50 metros mais baixa, mas parecia menos complicada, titubeei um pouco mas como havia parado de chover resolvi ir experimentar, um pouco mais de experiencia é sempre bem-vinda e a oportunidade de fazer um cume é sempre válida. Tudo certo, mais uma parede para escalar mas bem mais simples, sem precipício ao lado, agarrei bem e cheguei ao cume, nenhuma vista, me lamentei não poder enxergar a lagoa e toda a cadeia de montanhas ao redor mas como sempre, a natureza, ela tem suas necessidades.
Pensei em tomar meu vinho do cume, mas lembrei que tinha que estar 100% para descer a parede, não chovia e era tentador, mas tudo podia mudar em segundos. Quando cheguei ao começo da descida, aí sim, sem vento, sem chuva, abri meu vinho e meu chocolate.
A descida não ia ser fácil, os primeiros 200metros eram muito íngremes daquela terra preta e nem raízes tinham, seria ótimo ter um hotel com ducha quente lá embaixo, ia descer escorregando tudo pela lama, surfando, ia ser divertido, talvez devesse ter feito de qualquer maneira, estava perfeito, mas a segurança falou mais alto, uma perna espacada, torcida, e estaria em situação perigosa, mais uma vez, diferente de vídeos de redes socias, em expedições como a minha dependo inteiramente de mim mesmo, e se algo acontece um prejuízo de experiencia e financeiro é grande. Desci, como esperado várias patinadas, mas logo o terreno ficou menos íngreme, o tempo abriu um pouco, tive a oportunidade de ver mais uma vez a vista da lagoa e depois desci. De volta ao estradão, o casaco que tirei no meio da descida fui obrigado a vestir de novo, eram 17hs e a chuva apertou, paciência, alguns km depois, sofrendo nas subidas por conta da altitude mas feliz te estar dando essa experiencia ao meu corpo cheguei novamente a estância. De pronto peguei minha toalha, uma muda de roupa seca e corri para o chuveiro, Jose, me viu e alertou, “não tem água quente” e eu respondi, sem problemas, meu corpo ainda está quente. Na verdade, o banho nem foi doloroso, o frio era tanto que nem conseguia raciocinar a temperatura da água, apenas me limpei, me enxuguei e fui para roupas limpas e secas.
Nessa hora, Jose me veio com uma xicara de chá quente, que amável, segurei com minhas duas mãos, era bom que aquecia elas e eu tremia tanto que firmava melhor para levar a boca.
Arrumei minhas coisas, pus tudo para secar na varanda e comecei minha janta de sanduiche modo sobrevivência. Aquecido, alimentado, tomei o resto do meu vinho e escrevi essa memória, espero que amanhã consiga subir a estrada de volta, quem sabe ainda subir o Cerro Negro, para ter a vista, vejamos o que a natureza me reserva.

DAY 20 - DAY OFF

Hoje era pra ser um day off, acabou por ser apenas um final de tarde off. Abri os olhos na minha cabana debaixo das cobertas junto com a luz do sol, eram umas 5:30, continuei enrolando e por volta das 6 levantei, que incrível aquele silencio absoluto, apenas o canto dos passaros. Levantei e vi que a moto do meu amigo Jose já não estava lá, realmente ele foi embora cedo, realizei que estava ali naquele canto completamente sozinho. O sol ainda não vencia a altura das montanhas ao redor, então fazia frio, verifiquei as roupas, geladas e molhadas do mesmo jeito, resolvi me mexer começando por escovar os dentes, a agua gelada tirava a sensibilidade, me lembrei de quando escovava os dentes no Aconcágua, que usava luvas e tinha que fazer o bochecho usando um copo, encher a mão com agua era impossível, seriam no mínimo umas 2 horas depois tentando reaquecer. Mas ali nao fazia o frio do Aconcágua, lavei o rosto e a essa altura o sol surgiu atrás da montanha, quase que imediatamente expulsou a nevoa mais fraca que cobria os picos, e pude ver com detalhes aonde estive ontem no Fuya Fuya, vi perfeitamente a trilha subindo e chegando ao meio dos dois ombros, dos dois picos, lindo, e infelizmente nao estava assim ontem. Achei uma pilha de pedras da roda de uma fogueira e me pus de frente para o sol para tomar o cafe da manhã, infelizmente sem o café,  esperava que Jose ainda estivesse ali para me oferecer uma bebida quente como ontem, mas tive que me contentar com o mesmo sanduiche que foi almoço, jantar e agora café,  claro estava delicioso com um gole de vinho que restou de ontem.
Hora de partir, juntei tudo e na hora de sair tinha que tomar a decisão que ja estava na minha cabeça desde ontem, sera que tento usar a estrada que corri ontem para o outro lado de lá e sigo por outra estrada que me leva direto a próxima cidade? Nao era nem questão de ganhar tempo, era de explorar mesmo, decidi ir. Uma leve subida no início e logo começou uma descida de dois zig zagues que cheguei a frear, "cara se eu nao conseguir atravessar eu nao consigo subir isso aqui na volta nem ferrando". Nem pensei e desci, acreditando que tudo ia dar certo, depois vi que tinha o mesmo zig zag pra subir do outro lado, fui e quando vi uma das curvas lembrei da corrida de ontem, era aqui que eu pensei que seria impossível passar, a lama preta estava na estrada, quando vi ja estava nela e encarei, não deu, foi quase, faltou uns 5 metros para eu sair dela e ganhar tração.  O problema agora era grave, o carro descia em direção a uma vala e eu nao tinha o controle, freei, saltei e pus uma pedra na borda externa do pneu traseiro direito a fim que impedisse que o carro fosse naquela direção, fiz isso umas 5 vezes e foi dando certo, quando o terreno estava um pouco melhor e o carro ja quase na vala fui para o modo agressivo, engatei a primeira subi nem 1 metro para trocar a posição e engatei a ré em sentido fora da vala, deu certo, agora eu tinha a dianteira quase na vala e a traseira virada para o lado certo, menos pior se nao tivesse uma pedra imensa logo atrás da roda dianteira e o carro ia ter que vencer ela, tentei e começou a atolar. O desespero tomou conta, mentalmente ja estava arrependido, cansado e até com sede, pensei pouco e comecei a agir, cavei tudo que tinha antes das rodas e arranquei capim para pôr no lugar e criar aderência, tentei e nada, o carro mexia uns centímetros, saltei e resolvi tentar tirar eu mesmo, pus meu pés no barranco e as mãos no capo e comecei a empurrar o carro, como em um balanço que ganhava velocidade, a cada vai e vem ele andava mais, quando eu cansava empurrava rápido uma pedra na frente do pneu para garantir o espaço que ganhei. Fiz isso umas 3 vezes, amassei o capô do carro e preparei tudo pela última vez confiante que agora dava na marcha a ré.  Engatei e fui com tudo, o carro mexeu e deu para sentir ele na ponta da pedra, pronto para descer para o outro lado, parece brincadeira mas no balanço que fiz com meu corpo dentro do carro foi o suficiente para vencer, rapidamente endireitei para nao bater no barranco interno da curva e ali sabia que tinha acabado, o terreno era melhor e foi so descer com calma. Parei, fiquei muito feliz, até que peguei afeto no carro, parabenizei a ele, estávamos eu e ele nessa. Passado um desafio, o zig zag que falei que seria impossível voltar era o próximo desafio, antes de tentar, saltei e fui analisar, nossa realmente deduzi que era impossível, mas como o terreno era melhor, analisei bem o caminho que ia tomar e hora de tentar. Comecei e fui gritando junto com o "carrito", foi quase, nos últimos 5 metros ele quase ficou, mas como num último suspiro de sprint ele pôs as rodas acima e vencemos. O "carrito" é um chevrolet pequeno com 120mil rodados que pensava ser 1.0 e depois descobri que era 0.8, um motor de moto. Nossa que loucura, perdi umas 3 horas nessa história, mas estava aliviado, consegui não arruinar todo o resto da expedição, agora era voltar para a estrada e seguir para o próximo destino, só pensava como deveria ter tomado essa decisão no início do dia, que estupido, mas ao mesmo tempo feliz, mais uma aventura, história vivida.

Dia 21  - Cotacachi

Depois de um day off e uma noite tranquila de sono na montanha eu já estava avido para voltar a explorar. Uma parte de mim continuava desanimado com o tempo que vinha enfrentando no Equador, aqui é um lugar perfeito para sentir a imensidão da montanha, elevadas altitudes com picos rochosos vulcânicos que te desafiam e recompensam quando voce conquista o cume, e o destino planejado de hoje era exatamente assim, o Cotacachi com 4700m. Acordei cedo, procurei fazer tudo bem rápido, eu sabia que tinha um dia longo pela frente, a previsão era de correr uns 35km com 1700 metros de ganho, tinha chovido bem a noite mas a previsão era de uma manhã mais clara e a chuva chegar so por volta das 13hs. Entao, café rápido, já estava ao lado da montanha. Cheguei cedo no parque, infelizmente o mesmo papo de sempre, vou apenas fazer um trekking, no caso, neste parque tinha uma lagoa na parte baixa, Cuicocha, que se pode contornar com uns 14km, uma linda caminhada com boa elevação, uma trilha digna de um bom treino, mas o meu destino real era assim que contornar a metade da lagoa continuar seguindo montanha acima em direção ao cume. O início do dia foi uma delícia, a lagoa realmente era linda, a trilha tambem muito divertida, pude por várias vezes olhar todo o vale e a minha pousada abaixo, pude ver alguns grandes vulcões como o Cotopaxi, estava animado e assim subia rápido. Ao deixar a aureola da lagoa me dei com uma estrada de terra, muita pedra como sempre, mas uma estrada que vinha lá debaixo do vale por fora do parque, lembro de ter visto isso no plano do gps mas não imaginava que seriam tantos quilômetros, ali fiquei por 6km. Então justamente nesse momento aquele meu lado decepcionado com o mau tempo começou a tomar conta, uma nevoa muito densa me cercava, corria animado pensando no exercício mesmo, na pratica da corrida que tinha vontade de fazer, mas infelizmente o cenário era um contorno de nevoa com metros e metros de mais estradão a frente, parecia uma câmera focando o contrário do que deveria, ao invés de eu ver cada vez mais de cima a imensidão do vale, o cume que me esperava e o jardim de vulcões a minha direita, tudo o que eu via era o chão escuro de pedras, que além de tudo tinha a cor do asfalto. Logo acima, entendi o motivo da estrada, havia chegado a um conjunto de antenas, rádio, televisão, não sei, mas lá estavam e sem dúvida a estrada era para a sua manutenção. Neste momento começou a chover forte, eram todos os itens da lista me dizendo para voltar, para curtir o trekking da lagoa, “não sobe mais, não adianta, voce vai subir para não ver nada”. Além disso tudo eu tinha bastante convicção que não seria um dia de cume, observado lá debaixo, vi que os últimos metros estavam com neve, e esta montanha era uma das que a presença de um guia era obrigatória. Não seriam travessias de glaciares, mas alguns trechos de escalada teriam que ser feitos e eu sabia que chovendo, nevoa e um pouco de gelo iam tornar o cume impossível. Mas naquele outro pensamento do teimoso, de, “vamos mais um pouco para ver o que dá”, resolvi seguir, mais uns metros, as antenas ficaram para trás e encontrei uma placa do caminho onde ela voltava a ser trilha. Esse momento foi curioso, chovia, haviam umas pequenas nesgas de sol acima das nuvens, nada de vento, mas eu sentia muito frio, a temperatura estava por volta dos 2 graus, mas eu sentia muito frio, mais do que costumava sentir, pensei de imediato que era simplesmente pelo fato de não estar motivado. Não me entenda mal, não era uma desmotivação por estar de saco cheio sei lá, era simplesmente porque eu achava que merecia um pouquinho de tempo bom, para ter a perfeição! Decidi me equipar inteiro, calça, casaco e luvas, percebi que estava do mesmo jeito da Islândia em condições muito piores, queria estar confortável para não reclamar ainda mais nas próximas horas, impressionante como a moral é tudo!
Comecei a trilha, fiquei agradecido pela decisão, porque o início era de capim elefante e se não estivesse de calça iria destruir minhas pernas, foi bom passar por ele sem sentir os arranhões. Cerca de 1,5km assim e quando percebi o tempo começou a melhorar, longe de abrir e poder ver o horizonte, mas o suficiente para destapar o cume algumas vezes revelando um pico negro, sombrio e inóspito. Gostei de poder ver o cume daquela forma, parecia uma história de criança quando temos aquele longo caminho num penhasco verde mas ao fundo um castelo negro, tomado por nevoa e pedras. Não me senti desafiado, simplesmente achei que seria divertido chegar até aquela parte sombria e de repente não me importava mais com o cume, queria apenas estar lá. A tática deu certo, o tempo melhorou mais um pouquinho e o caminho era divertido, um misto de turfa e pedras vulcânicas, poucas pilhas de pedra que ajudavam a entender minha direção e escolher meu próprio caminho, e claro, mais uma vez eu era o único na montanha, a sensação foi boa, para cada passada me sentia realizado e se tivesse que voltar dali, já tinha valido o dia. Continuei seguindo e superei as expectativas, cheguei a 4400m, já estava imerso na parte do cume da montanha, em meio a rochas. Percebi entao que tinha feito uma linha reta em direção ao topo, sendo que na verdade a trilha buscava um flanco pelo lado esquerdo. Titubeei alguns momentos sobre seguir a trilha ou descer, analisei o gráfico de elevação e vi que esse contorno ia ter uns 2km sem ganhar altitude e depois vinha a parede de escalada e pensei, “vou fazer esses dois quilômetros para me encontrar em uma posição idêntica a que estou”. Na verdade estava me enganando, nada na montanha é idêntico, como quem cai em si, coloquei o gps em navegação e comecei a descer a montanha em direção a trilha, foi fácil encontra-la, segui por ela como esperava, contornando, e ai sim algo inesperado surgiu. Como de repente a trilha acabava num vazio, numa imensa vala de erosão de uns 10 metros de profundidade e uns 10 de largura, impossível descer, bom, nada é impossível, mas para mim seria, já eram umas 13hs da tarde e olhando melhor não era uma e sim 3 valas no caminho. Sorri, de uma certa forma foi reconfortante, já estava muito mais longe do que esperava, conseguia me divertir muito e uma barreira física me impedia de seguir, posso me conformar sem problemas. Nos minutos de reflexão pensei em como as pessoas cruzavam a vala, afinal a trilha estava ativa e a vala não parecia ser algo novo, um pouco de análise e vi que havia um desvio subindo a montanha para alcançar uma parte menos profunda da vala e atravessar, sem problemas, nem pensei em ir, mesmo dessa forma atravessar os 3 desvios e chegar até a parte da escalada ia me tomar no mínimo 1 hora para ir e 1 hora para voltar, já seriam 15hs quando eu começaria a descer, e tudo isso para chegar a um local que eu não poderia continuar, sem problemas, agora sim era a hora de voltar!
Dei meia volta e comecei uma divertida descida, passei novamente pelo mix de turfa e pedras inclinado, e rapidamente me despedi do setor sombrio e já estava de volta a crista verde, descia muito feliz, rapidamente cheguei às antenas e ao estradão, essa parte não tinha como ser diferente, foi um pouco chata mas obviamente fácil tecnicamente, voltou a chover, ou talvez nunca tenha parado naquele setor e aproveitava para desligar a cabeça e refletir sobre estar nas montanhas em dias assim sem visibilidade, cheguei à conclusão de sempre, é obvio que o dia perfeito será aquele aberto e de imensidão, mas dias assim fazem o espetáculo mais natural como deve ser, e devemos ver a beleza nele.
Uns rápidos quilômetros descendo e voltei a auréola da lagoa, o plano era seguir a direita continuando o contorno, isso significaria uns 9 quilômetros, se eu fosse pela esquerda voltando por onde subi seriam apenas uns 4. Pensei e resolvi curtir a descida dessa vez e fazer um pit stop para o tradicional vinho e sanduiche que hoje não tinha sido possível curtir no cume. Já quase no final do caminho achei um lugar quase que perfeito, do penhasco, a nevoa rodeava rapidamente a margem da lagoa, as nuvens estavam quase a minha altura e a água lá embaixo a uns 150 metros curiosamente recebiam raios do sol o que a fazia ficar prateada, sensacional. Ali sentei e aproveitei o momento. A maior parte foi de agradecimento, foi um dia de pouca adrenalina e emoção, mas de muita reflexão, de ver a beleza quando ela está escondida, o famoso ver o lado bom das coisas, tive a certeza que reforcei essa ideia hoje na montanha e mais uma vez era fiel ao meu ideal, que estas conquistas de autoconhecimento só são verdadeiras em momentos assim e não em seminários ou palestras.
Últimos quilômetros montanha abaixo, de volta ao carro, e assim que cheguei mais vinho enquanto colocava o equipamento para secar, uma boa janta me esperava para ser feita na cozinha da pousada. Mais uma garrafa de vinho, uma carne, linguiça de entrada, aspargos e a noite fechou com chave de ouro.

Dia 22 e 23 – Day Off em Quito

Nessas viagens de expedições sempre faço programações que acabo não conseguindo cumprir na totalidade, é impressionante o sentimento de que quando coloco o pé no Brasil a vontade de se isolar na natureza retorna já no dia seguinte, eu simplesmente esqueço de tudo e ela vem fulminante, novamente com super programações, mas como sempre tambem, quando estou lá na expedição não consigo cumprir com todos os planos. Motivos? Uma soma de pequenas razões que passam até mesmo por um pouco de monotonia em todo dia encarar montanhas, um pouco de cansaço de planejamento, enfim, nada grave, apenas a vontade de relaxar um pouco, um break. E assim foi, dia 22 fui para Quito e ali fiquei no dia 23 tambem. A expedição continua, busquei contatos para tentar subir o Cotopaxi ao meu estilo, pesquisei inúmeros novos destinos, opções entre ir bem ao sul do país na região de Baños onde existem termais e floresta versus a mais vulcões. Decidi de fazer uma montanha mais amigável no dia 24 e no dia seguinte, para fechar, o que seria o maior desafio, o Illiniza que só era permitido subir guiado mas o iria explorar sozinho. Portanto para o dia 24, encontrei esta Reserva no meio do caminho, Pasochoa, pela pesquisa era uma reserva, que começava a trilha com muitas florestas e na parte alta tinha uma crista de montanha que parecia muito bonita, nada muito alto e parecia ser simples e seguro, seria um dia de menos surpresas e mais corrida, ótimo para um recomeço, ganho de confiança para o ultimo desafio e fechar com chave de ouro.

Dia 24 – Pasochoa

Sendo assim, levei o carro ate a portaria da reserva, uma boa estrutura com estacionamento e alguns carros, fiz o registro com o guarda parque e comecei, o inicio me lembrou muito a parte de floresta do Parque Nacional da Serra dos Órgãos, rapidamente já cruzei com turistas no caminho o que mostrava que era uma montanha mais acessível, logo a frente depois de 1 hora deixei a floresta para tras e já avistava a crista de montanha formando uma linha seguindo ate o cume do dia, haviam vários picos e inclusive outras cristas que se uniam na mesma parte alta do cume, tinha visto isso na pesquisa, os caminhos eram muitos e tinha escolhido um, na pratica iria descobrir como seria. Mais metros acima e a aventura começou, encontrei com um grupo de umas 20 pessoas que subiam uma parede de pedra todos com corda, com os guias os amarrando e fazendo a segurança, lembrei na hora do rapel no Morro do Moreno aqui na minha região, onde são frequentes estes serviços de rapel, de pequenas escaladas na pedra. Por sorte minha, ao lado da parede tinham umas pegadas na pedra, a beira do desfiladeiro, mas seguro o suficiente para eu escalar, venci a parede de uns 15 metros e segui em frente. Desta parte era possível avistar pontinhos em outras partes, pessoas tambem passeando, muito bacana como uma montanha muito mais técnica que o Pico da Bandeira por exemplo, para os locais era um simples passeio, estavam lá em jeans e botas, ok, não eram muitos mas ali estavam. Cada trecho de escalaminhada de pedra na crista era emocionante, era estreito, íngreme e sempre com perigo, mas ao mesmo tempo na medida certa de ser possível vencer, o ambiente desta vez não me parecia extremamente selvagem e em solidão, as pessoas que eu avistava me dava a segurança de que era possível fazer, não precisava parar a todo momento , analisar e tomar uma decisão baseado no que poderia acontecer de errado. Assim fui seguindo, com um sentimento maior de diversão do que de apreensão, ate que cheguei ao cume do dia. O cume de hoje foi mais um ponto de parada no meio do dia, não era uma conquista, era so o final da diversão do caminho que percorri e o ponto de retorno para o mesmo caminho agora descendo, igual uma montanha russa que fui uma vez que não percorre um trajeto em loop, ela começa vai ate um ponto e depois faz o mesmo percurso de ré. No cume, encontrei uma família inteira, pai, mãe, filha de uns 10 anos e o cachorro. Um rápido bate papo e pausa do almoço, tinha uma empanada deliciosa que tinha comprado no posto no caminho, ofereci a eles, e tava com uma “cara” tão bonita que eles não dispensaram, dividimos ela. Alguns minutos relembrando as emoções da subida que fiz rapidamente e pronto para descer. A descida tomei outra linha, mais íngreme ainda mas menos exposta e com algumas arvores, as opções de caminho eram muitas, cruzei novamente com o grande grupo ainda subindo e logo cheguei a parte menos íngreme e corrivel, que diversão, soltei as pernas, elas iam sozinhas, 2 dias de descanso e vários dias aclimatados a altitude e já tinha muita forca nas pernas. Mais um dia incrível, o que achei que seria simples e sem graça, se desvendou uma montanha selvagem mas acessível a mais pessoas, segura mas que oferecia perigo todo o tempo, o exato balanço, a exata forma de diversão para nos corredores de montanha podermos focar mais na corrida e menos nos detalhes técnicos, precisava disso, dessa quebra na sequencia de dias, ganhei uma energia incrível para o ultimo dia que vinha, o de maior grau de desafio.

Dia 25 – Illiniza Norte

Já falo desde o início, o illiniza vai ser uma história de final feliz, muito feliz. Significou mais um capítulo de desafio vencido na minha história, uma montanha técnica, que eu não estava autorizado a fazer, só se pode fazer o cume com guia, mas eu estava farto dessa exigência, não haviam glaciares a cruzar, decidi enfrentar e ir por conta própria. Saí bem cedo nesse dia, queria ser um dos primeiros a entrar na área do parque nacional, fiquei sabendo que iria conseguir chegar com meu carrito a Virgem de onde começava a trilha e fiquei tranquilo, como esperava, ao chegar na portaria, os Guardaparques logo me perguntaram o que iria fazer, tive que mentir, disse que iria apenas ao abrigo e retornaria, este abrigo está exatamente na base entre os dois picos do Illiniza, Norte e Sul. O sul, poucos metros apenas mais alto, tem toda a sua fase final coberta de gelo e bem técnico, a poucos metros de distância o seu irmão, o Norte fica sem gelo nessa época, impressionante como a natureza é caprichosa, tão próximos e tão diferentes. Dado ao meu instinto de desafiar, resolvi que iria mentir e subir até onde eu tivesse completa segurança, já com alguns dias no Equador, percebi que eles lá não eram exagerados em questão de segurança como muitos países, as montanhas eram realmente perigosas, não apenas pelas características mas pelo fato da maioria estar acima de 5mil metros de altitude, onde qualquer erro pode ser fatal. Enfim, com minha meta traçada iniciei meu dia, um contratempo com o carro me fez perder uns 40 minutos, me preocupei e comecei a trilha afobado, mas já no início o dia estava lindo, as montanhas eram perfeitas, podia avistar a trilha até a base da subida final apesar de estar a uns 5 quilômetros de distância, era incrível. Comecei muito concentrado e muito forte, queria chegar à base o mais rápido possível, queria ter tempo para gastar no ataque ao cume, queria poder pensar, avaliar e decidir se nos momentos decisivos seguiria em frente, não queria olhar para o relógio e ser obrigado a tomar uma decisão de desistir querendo continuar. A concentração deu certo, foi como um interruptor, à medida que subia e muito forte, mesmo já acima de 4 mil metros, podia facilmente fazer as contas na cabeça das previsões de tempo, na verdade o cálculo estava tão fácil e eu estava tão rápido que duvidava de mim mesmo, ou achava que algo estava errado ou não queria acreditar que estava tão bem, ganhar confiança e ter uma decepção mais tarde. A ideia, mesmo começando cedo, era de chegar à base da montanha para ataque por volta de meio dia, mas acabei subindo os primeiros 800 metros em pouco mais de 1 hora, um tempo ótimo considerando a altitude acima dos 4 mil e o cansaço acumulado da viagem. Quer saber? Já estava feliz, os metros finais quando já avistava o abrigo foram de grande satisfação. Ao mesmo tempo, esse era um momento decisivo, não sabia se iria encontrar algum guardaparque no abrigo que me impediria de seguir em frente sozinho, não sabia quais eram os procedimentos, eu havia dito que iria so até ali e voltaria. Assim como um soldado que vai atacar um bunker, avistei o abrigo a uns 200 metros, procurei por uma movimentação e nada, decidi entao seguir em um ritmo bom de corrida, passando em frente ao abrigo do modo mais sorrateiro possível, assim que passei fiz muita força para subir o ombro da montanha com uns 40 metros pois saberia que chegando lá estaria fora do alcance dos gritos de um guarda.
Tudo certo, lá estava eu, na emenda entre os dois picos, um coberto de neve e fora de alcance nesse dia, o outro, com um dia limpo, mostrava sua trilha de infinitas rochas, com o cume ainda escondido, não via como poderia ser possível vencer aquele fio de pedras de diversas formas até chegar ao ponto mais alto. A natureza sempre é demais, como aquilo havia sido formado? Nós sabemos a resposta, mas sempre nos fascina, a quem sabe admirar, como um amontoado de pedras de 400 metros de altura se enfileiravam no que era o antigo anel de um vulcão e assim estão por tantos anos? O tempo para apreciar era pouco, apesar de estar adiantado, sabia que tinha que seguir rápido em frente, apesar de estar quente pela subida rápida para “fugir” dos olhos do abrigo, o vento estava incrível, era a parte alta, lá sempre tem vento, decidi parar, colocar o casaco, luvas e me alimentar. Sabia decisão, enquanto fazia isso, um grupo de montanhistas apareceu a uns 100 metros acima no meio do mar de pedras, logo pensei, “po, ali eu consigo chegar, eles nem estão usando equipamento ainda além dos capacetes”, já fiquei feliz, chegar aos 4900 metros já estava satisfeito. Ataquei rápido, no começo procurando o caminho pelo gps e lembrando da linha no mapa que havia desenhado, como havia aprendido na Islândia, tentar decorar o caminho por referencias para momentos decisivos pode ser de grande ajuda, tentar decorar o trajeto de um dia inteiro é perda de tempo, mas para momentos decisivos como este, reparar em um ponto antes levantado no mapa, é como ver uma marcação, te da confiança, em momentos assim tudo que voce precisa é saber que algo está dando certo, voce se agarra a aquela sua competência e acredita que o resto tambem irá dar certo. Rapidamente cheguei ao grupo, por um momento pensei em ficar tranquilo e ir no final da fila com segurança, mas aí lembrei que eles poderiam estar fazendo o ataque e dormir no abrigo ao invés de ter que descer toda a montanha no mesmo dia, estava na mesma posição deles mas eles se moviam lentos. Deixei essa opção de lado, juntei com a adrenalina do momento e fui passando o grupo por uma encosta onde todos eles se seguravam a uma corda fixa preso pelos guias e fui tomando caminhos mais arriscados para passar por eles rapidamente. Não achava muito “bonito” fazer isso, estava correndo um risco, mas passar rápido por todos que estavam tão lentos, não tem como não pensar em uma certa competitividade, na verdade, trazia a tona o meu ideal, do que eu sou capaz sem precisar de ninguém me guiando, me dando autorizações, apenas eu, solto, na montanha explorando, era como se eu mostrasse a todos o que qualquer um deles era capaz de fazer, acho que essa é a melhor definição. Passei, cumprimentei os guias e logo a frente, ainda contornando o flanco direito da montanha, avistei outro grupo. Vamos tomar a mesma tática. Era bom ver esses grupos, me dava a confiança de que seria possível seguir em frente, eles estavam ali, a aquela hora e eu muito mais rápido, me enchi de confiança. Ao sentir isso, imediatamente um alarme de confiança disparou em mim, não podia deixar esse sentimento me invadir, isso era sinônimo de perder a concentração, cometer erros e o resultado já sabia, meia volta ou um acidente. Mas novamente, com movimentos que passavam fora da trilha, encosta de mil metros da montanha, passei o segundo grupo e logo adiante avistei um trekker que descia uma parede de pedras, eram apenas 2 e seu guia. Percebi que já tinha alguma falha de raciocínio quando eles passaram, subi a parede de pedras e segui no caminho diferente que eles haviam vindo. Deu medo. Primeiro  porque sabia que meu erro havia sido resultado da minha afobação, eu já havia sentido o alarme mas ainda assim cometi o erro, segundo porque mesmo 5 movimentos na direção errada e me coloquei numa posição de risco na montanha, tive que travar, analisar o local e voltar de forma segura, me senti envergonhado com o guia observando, aquilo foi como voce bater num meio fio quando esta dirigindo dormindo, você acorda na hora, voce caí em si e se pergunta como foi tão estupido. Mas tive sorte, foi um simples movimento, voltei, entrei na rota correta, cumprimentei o guia, eu já na parte alta e vi que pouco faltava para o cume, o grupo já havia ficado bastante pra trás e realizei que dali em diante era comigo mesmo. Sem problemas, estava alerta, no fundo esperava que não voltasse a cometer um erro assim como dirigindo a gente volta a dormir, tudo é um calculo de risco, mas decidi seguir em frente na decisão de qualquer dúvida, sentar e aguardar, ali não era o Aconcágua, eu podia me dar o luxo de sentar e esperar, estava “seguro”. Mas a montanha tem seus caprichos e os últimos metros de subida foram assim como lindos, fáceis. Não se engane, ainda era um mar de pedras, mas havia opções, era como se a montanha dissesse pode entrar, pode vir por onde quiser, voce já mereceu. Segui os últimos passos extasiado, me relembrou um pouco o Aconcágua, de repente o tempo começou a fechar, mas nada alarmante, eram apenas nuvens mesmo, outro capricho da natureza, justo no cume não tinha a visão do que conquistei, não faz mal. Uns metros a mais e cheguei ao cume, a certeza era uma cruz de metal e um trekker que estava ali sentado, troquei umas palavras com ele, eu gritando de emoção, que cume sensacional, as nuvens estavam a minha altura, me sentia literalmente entre elas, aquela sensação de quando voce está no avião e vê elas abaixo e pensa como seria andar sobre elas como um colchao, ali estava eu, como se sentado no meio delas, simplesmente emocionante. Agradeci demais ter conquistado aquilo, ao meu estilo, colocando metas curtas e reais, possíveis de cumprir, assim como na vida tudo foi se encaixando porque eu não parei, apenas analisei, fiz o que era possível e tudo deu certo. O cume nada mais era que outro pedaço do mar de pedras que ali se amontoavam para não levar mais a lugar nenhum acima, assim como desde o inicio a montanha decidiu que ali era o fim, aproveitei por alguns momentos diversos cantos, sentei, me aconcheguei, deixei o pensamento levar e alguns minutos depois era hora de me despedir. Lembrei que o grupo se aproximava, a crista do cume era muito pequena apenas pra mim, imagina 20 pessoas, decidi descer antes dele chegarem. Cruzei com eles no caminho de volta, fui obrigado a dizer a tradicional frase do “falta pouco” e deixei eles pra trás me desafiando fora do percurso da trilha da mesma maneira da subida. Agora eu estava adrenalizado, com a conquista, com essa montanha, com o terreno que era uma descida alucinante, até que sem duvidas errei o caminho novamente, sem problemas, já estava amigo da montanha, virei a cabeça e na mesma hora vi para onde tinha que ir, era como se ela tivesse me chamado, “ei, volta aqui, vamos embora”. Continuei minha descida, mais um errinho quase chegando já, ate pensei em tomar uma outra direção, mais agressiva, mas não podia de jeito nenhum dar chance de estragar aquele dia, além disso o tempo ia fechando cada vez mais, essa era a previsão do tempo, parei já na parte final mesmo da escalada apenas para registrar em vídeo tudo que passei, tem horas que não da, voce vai pensando em tudo que passou, voce sabe que aquele sentimento voce vai ter poucas vezes na vida, voce se sente na obrigação de parar e registrar, de captar aquela emoção para poder reviver mais tarde. Terminei a descida já no abrigo novamente, um jovem se aproximou e me perguntou se tinha subido sozinho, percebi que ele não era nenhum guarda parque e disse que sim, ele disse que passaria a noite ali mas não teria coragem de fazer o mesmo que eu, transformei em conselho a tática que usei, vá ate onde conseguir, te garanto que vai valer a pena. Ia começar a descer quando lembrei do quanto fui rápido na subida e de como seria divertido o terreno, resolvi parar, me alimentar ainda melhor, tomar o resto do vinho para o combustível e amarrar bem os tênis como quem diz, aperte os cintos, lá vem a diversão. UAU, a descida foi alucinante, registrei algumas partes, mas tiveram momentos que nunca me senti tão rápido, rápido em escolher os pontos onde aterrissava os pés e respondia as pequenas escorregas e rápido de velocidade mesmo, não corria, dava pequenos saltos, incrível. O final? Ainda virou um sprint, o terreno ficou de grama e cheguei ao estacionamento como quem cruza uma linha de chegada, deitei no chão, agradeci novamente, comecei a guardar as coisas no carro como um piloto de formula 1 que chega, tira o capacete, luvas, toma uma agua, lava o rosto, exceto que ali não havia ninguém para entrevistar, perguntar como foi, eu dizia internamente e ate em voz para a própria montanha, olhei para ela lá em cima e pude ver onde estive. Definitivamente era uma nova pessoa, agora era hora de voltar, diferente, evoluído, enxergando tudo de forma diferente, sempre.

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quarta-feira, 13 de fevereiro de 2019

Aconcagua, uma Segunda Chance

Aconcágua, uma segunda chance!

Em poucos momentos na vida temos uma segunda chance, mas a montanha mais uma vez se mostra única, ela é cruel com quem não a respeita mas ao mesmo tempo estará sempre lá, pronta para te receber novamente, para que você volte diferente, com os aprendizados, a cumprimente mais uma vez e mostre a ela como você mudou e se agora será digno dela.
Pois bem, o meu maior aprendizado foi o mais básico, comum e que volta e meia repetimos, jamais subestimar a montanha. Nessa nova jornada passei meu tolo plano de 2017, de 7 dias para o cume, sonhando até com corrida, para um audacioso mas real plano de cume em 9 dias, mas, dessa vez, com estrutura para estender por 15 dias caso a montanha mandasse!
Planos traçados é hora de empacotar tudo e ir de encontro ao inesperado.
Toda a viagem foi uma mistura de nostalgia com ansiedade. É engraçado, em 2017 eu vi o cume sentado no avião e tinha uma certeza que o lograria, dessa vez eu tinha outros olhos, conseguia enxergar como o Colosso das Américas era imponente, como seu cume era remoto e soberano frente a toda cordilheira dos andes, o que me confortava era o pensamento de que dessa vez eu tinha tempo, dessa vez eu iria fazer o que a montanha mandasse, mas ainda assim, impossível prever qualquer coisa.
Chegamos em Mendoza, aluguel de equipamento, Marcelo resolveu se equipar bem com saco de dormir de -40 graus, eu, ainda teimoso, tinha comprado um de -10, mas de pluma de ganso e confiava que ia dar certo, fora isso, tudo uma repetição do ritual de preparação, permisso de escalada, botas, crampons, ate mesmo caminhar pelas ruas e fazer cambio no mesmo lugar nos fazia lembrar do outro ano e a todo momento retornava a ideia, o que vai acontecer esse ano?
A primeira mudança foi quanto ao horário de entrada no parque, dessa vez resolvemos sair cedo de Mendoza, chegar a Penitentes perto do horário do almoço, entregar nosso equipamento pesado para as mulas na empresa e almoçar, comer bem, comer no restaurante que nos acolheu do nosso regresso de 2017, comer o ultimo chorizo, a ultima cerveja, depois disso, de barriga cheia, seguiríamos para a entrada do parque fazendo a pequena caminhada de 3 horas que nos levaria ao primeiro acampamento Confluenza.

A chegada a Confluenza 1 foi tranquila, um final de tarde, 3.200mts a sensação de que tínhamos começado pra valer. Marcelo optou por ter suas refeições com a empresa, eu na minha teimosia de auto suficiência, fiz a minha própria, cedi quanto a dormir no Dome deles, seria menos uma vez que teria de montar e desmontar a barraca. Tudo tranquilo, ventava muito e fazia sol, nos sentamos na sombra do Dome e batemos papo, avistávamos curiosos um asiático com a barraca quase decolando e ele na sua paciência, não sabíamos ainda mas nossa história iria se juntar ainda mais vezes.
Dia 2. Bom, aquela longa caminhada de pouco mais de 30km pelo vale que chega ao Acampamento Base. Caminhar é uma das atividades mais entediantes e sofridas para mim, tudo dói, demora muito e a cada minuto a mochila ficava mais e mais pesada, saindo de 20kg e chegando com uns 30.
Mas é claro que caminhar num vale da Cordilheira dos Andes é incrível, a todo momento você para e contempla, vem um pensamento à cabeça, para mim, sempre me impressiona a imensidão da montanha, você repara e está cercado de montanhas de 5 mil metros, mas como você tem um panorama tão vasto, elas parecem pequenas, parecem não mais complicadas de subir que um morrinho de pasto em uma fazenda, mas basta você se aproximar um pouco e ver a magnitude daquela rocha.

Depois de alguns cruzamentos com mulas, paradas de lanche e muito sol, chegamos a base da subida para o acampamento base, Plaza de Mulas. Esta ultima subida tem cerca de 400 metros e como disse, parece simples mas depois de 7 horas no sol a coisa fica séria. Comecei a subir num bom ritmo, já estava quase a 4 mil e queria sentir meu corpo, tudo saiu bem, quase terminando, Marcelo ainda se alimentava e relaxava antes de encarar a subida. Quando o vi la embaixo me veio um sentimento curioso, estava distante dele mais ou menos a altitude que me faltou para o cume em 2017, pude constatar o quanto fiquei próximo, me enchi com um sentimento de que faria a qualquer custo dessa vez mas ao mesmo tempo um medo real de algo acontecer e não chegar nem tão perto novamente.
Cheguei. Ver a placa de Plaza de Mulas foi como sentir que cheguei em casa, ali em 2017 sofri muito, passei mal, tive uma avalanche de sentimentos, o que me esperava dessa vez? Fui para a tenda de check in médico, 2 escoceses esperavam também, havia acabado de retornar da Escócia, naturalmente falei nos lugares que estive e eles disseram que não conheciam, acontece com frequência isso já que estou sempre catando uns buracos quando viajo. Avaliação médica ok, fui armar minha barraca, Marcelo havia decidido que ia dormir todos os dias na maca do Dome, sendo assim me emprestou sua barraca, para o jantar começava as intermináveis jornadas de cozinhar vários tipos de comida, principalmente liofilizada, que em resumo são todas péssimas, mas até nisso melhoramos um pouco que do outro ano.

Dia 3. Primeira noite no Base Camp foi super tranquila, dormi bem, me sentia bem e o melhor, a primeira mudança de 2017, nosso dia seria de descanso! Fiquei um pouco preocupado como iria ocupar meu tempo o dia todo, mas é impressionante como fazer tudo devagar consegue consumir bastante tempo. Marcelo baixou um livro para mim no celular, do explorador Schackleton, leitura perfeita para a ocasião, náufragos na Antártida, passando frio extremo, se alimentando mal e tendo que buscar forças para se manterem vivos, nossa jornada mal havia começado mas sabia que encontraria varias semelhanças em nossas historias. Nossos vizinhos eram hermanos, um corredor de montanha que já havia feito o Aconcágua em ascensão rápida, correndo desde a portaria ao cume como meus ídolos, me contou os bastidores de tal empreitada e nos apresentou o grupo de 3 pessoas que ele levava, um grupo distinto de um senhor que aparentava seus 50 e poucos e outros dois mais jovens na minha idade, tínhamos planos semelhantes e apesar de parecerem inexperientes contavam com um ótimo guia. Passei boa tarde do dia nas cadeiras espreguiçadeiras, um verdadeiro jogo de sinuca, pois, sob o sol forte se sentia calor, mas ao tirar os casacos vinha o vento cortante do vale e gelava o corpo instantaneamente, mas até isso foi bom, fez o tempo passar, e entre ciclos de musica e leitura, sombra, sol e garrafas de água, o tempo passava. Me senti bem o dia todo, era ótimo estar no acampamento base me sentindo bem, eu coloquei a minha barraca no mesmo local de 2017, e o caminho para ir ao banheiro, pegar algo na barraca, fazer comida era tão diferente do outro ano, eu não cambaleava mais em sofrimento, eu podia olhar em volta, admirar, acenar para um companheiro, responder uma pergunta, coisas simples que quando estive mal não conseguia fazer. Jantamos e outra boa noite de sono a frente.

Dia 4. O dia do ataque ao cume vizinho Cerro Bonete com 5.000 metros de altura. Acordamos, encontramos nossos vizinhos hermanos já adiantados no cafe da manha e eu Marcelo decidimos não nos preocupar muito com horário, eram 14km de ida e volta, o clima não estava ruim e sabíamos que não seria tao difícil. E de fato não foi, depois de uma curta caminhada passando pelo hotel abandonado e a estacão dos Rangers entramos no vale e podíamos avistar o cume ao fundo. A subida era de terreno bom, com zig zag e apenas o final tinha trechos técnicos de pedra e escalaminhada. Eu queria muito ter ido de tênis, ser ágil, mas um mix de cautela, se acostumar com a bota e respeito a montanha me fizeram mudar de ideia, assim a subida não foi tao rápida, mas cadenciada, fui buscando nossos hermanos que haviam saído antes e constantemente olhando para trás e vendo, na verdade encarando ou reverenciando o Aconcágua, era constante o pensamento de pedir que tudo desse certo. Metros finais e cheguei ao cume com os hermanos, Marcelo demoraria mais uns 40 minutos então resolvi relaxar e esperar por ele, o cume era lindo, do jeito que eu gosto, apenas uma ponta de pedra onde mal 2 ou 3 pessoas podem ficar em pé, se via toda a imensidão em 360 graus e a forma rápida como subi, me senti muito agradecido, um grande alivio tomou conta de mim porque sabia que se tudo desse errado eu tive aquele momento, e ele valeu. Marcelo chegou, a felicidade dele foi a mesma, acho que renovou as nossas forcas e descemos no melhor estilo trail run, gritando, felizes, satisfeitos. Nessa noite cedi minha teimosia de auto suficiência e me dei ao luxo de tomar um banho quente, 25 dólares, que me renovaram, estava pronto, agora era descanso e a espera pela batalha que estava por vir.

Dia 5. A calma antes da tempestade. Graças a Mãe Natureza, não tínhamos tempestade no clima, apenas internamente, apesar de descanso, grande parte do dia foi tomado com os preparativos do material que iríamos levar em direção ao cume, alguns ajustes de logística com a empresa, visita a tenda médica, tudo seguia bem. Nossos hermanos argentinos tinham planos mais cautelosos e não seguiriam no próximo dia, isso acendia alguns alertas do tipo, estaria sendo novamente arrogante?  Desde o dia anterior após o retorno do Bonete, tinha leve dor de cabeça, suspeitava do sol, entrei no remédio Diamox que alivia o inchaço principalmente da cabeça, como era alérgico a Sulfa, a medica disse que não poderia tomar, mas uma consulta online com minha irma e comecei o tratamento muito leve monitorando qualquer problema. Tudo certo! A montanha continuava a me tratar bem e mais uma noite de sono, desconfortável mas tranquila vinha pela frente.

Dia 6. É a hora! Começavamos mais uma vez uma jornada de 4 dias que terminaria no cume. Em 2017, eram apenas 3 dias esta programação. A caminhada até o Camp 1, Plaza Canada a 5.050mts lembra a comparação que fiz das montanhas que pareciam morros de pasto no vale, de como pareciam simples, ledo engano. A subida é muito íngreme e a montanha começa a impor o seu ritmo, você vai lento não porque você quer, sua cabeça diz que você pode ir mais rápido, mas você está carregando quase 30kg nas costas e 2 kilos em cada pé, você esta a 5.000 metros de altitude, a concentração de oxigênio no ar é quase a metade de quando você esta dando uma corrida na praia, não há escolha, o melhor a fazer é se acostumar, começava o jogo mental que duraria 4 dias, de apenas juntar forcas e seguir sempre em frente, no caso, acima, sempre acima. A caminhada durou 3 horas que mais pareciam 10 e enfim cheguei. Procurei um lugar enquanto Marcelo chegava, montamos nossas barracas e o vento começava a mostrar sua forca. Tínhamos uma boa surpresa no entanto, encontramos brasileiros no dia anterior no CB e eles nos disseram que haviam escondido feijão e batata doce numa pedra, não dei muita confiança pois não queria alimentar esperanças que encontraria e tampouco estivessem em boas condições, mas a mente ainda funcionava bem, foi muito fácil achar e a comida estava embalada a vácuo, na alta montanha nada sobrevive, então quando esquentamos e abrimos o pacote, estava simplesmente delicioso! Marcelo sempre me disse que a comida que você tem em alta montanha vai ser sempre a melhor da sua vida, se você fizer um miojo, vai ser o melhor miojo do mundo, imagina então uma porcão de feijão? Aquilo foi a maior sensação de conforto que poderia ter. Alimentados, saímos a procura de água, nos haviam dito que escorria um filete de água do glaciar a uns 200 metros e fomos ate la. Nos reabastacemos e quando voltamos o fim do dia se aproximava, e não há outra escolha, hora de se recolher a sua barraca, de ficar em silencio e escutar o seu corpo, o meu, ainda dizia que estava tudo ok, relaxei, fiz um pouco mais de comida ao anoitecer para dormir bem. Opa, tá na hora de alguns problemas, durante a noite o clima virou completamente, ventava muito, minha barraca estava super bem ancorada mas era pequena e as varetas dela tem a forma de um Y, ou seja, apenas uma vareta longitudinalmente fazia sua estrutura, o vento acertava a barraca em cheio por todos o lados e tudo dobrava de um lado para outro, parecia a vela principal de um veleiro, de um lado o vento me amassava e fazia a barraca colar com a fina camada de gelo no meu rosto, do outro lado, formava um balão com o ar que não conseguia escapar. Dormir essa noite foi como encontrar uma posição em ônibus, eu colocava a perna para cima e fazia forca contraria ao vento para estabilizar a barraca, trocava a posição e tentava dormir, dava certo, mas bastava a primeira rajada mais forte para me vencer, tudo empenar e eu me encher de preocupação. Aos poucos fui percebendo que a barraca estava bem ancorada e enquanto eu estivesse ali dentro seria impossível ela voar, é engraçado, você esta dentro do saco de dormir, quente, com o zíper fechado, dentro da barraca faz 0 graus, do lado de fora com o vento, uns -20, mas ainda assim eu ficava o tempo todo pensando se valia a pena sair, ver a situação e tentar melhorar, ainda bem, resolvi deixar pra la, consegui ter sonos intermitentes o que para mim era o suficiente, não esperava mais que isso nos próximos dias.

Dia 7. Uau, já terminava a primeira semana que estava na montanha, não parecia, quando faço viagens, no sétimo dia já estou chegando a um ponto onde começa a parte final, onde sentimentos de daqui a pouco estou em casa me invadem. Amo e preciso viajar, mas nunca fui desses de viajar sem data para voltar, que sofrem na hora de voltar, gosto das curtas expedições, da recarga da bateria no meu lar, no meu lugar e ai já planejar o próximo destino, acho que deve haver uma semelhança entre esse sentimento e minha carreira de atleta com suas preparações entre uma competição e outra.
Hora de sair da barraca. O tempo estava bom, era difícil acreditar na noite que passamos, como o clima muda na alta montanha. Juntamos nossas coisas e fomos em busca do mesmo ponto de água de ontem para encher tudo que bebemos a noite e a prova da noite gélida estava la, tudo havia congelado, não havia nenhum filete de água, o jeito era subir e começar o processo de derretimento de neve. Tomamos café e iniciamos a caminhada. Tínhamos mais 500 metros de subida onde chegaríamos ao ombro da montanha, tudo corria bem, encontramos um filete de água no caminho e enchemos tudo que tínhamos, pesados, começamos a ultima subida do dia, aquela em que se pode enxergar aonde vai chegar e quase tocar, mas você esta 3 horas de distancia. Era interessante como por vezes eu esperava e olhava para trás para ver Marcelo, ele não parecia distante e então eu parava um pouco, 5 minutos se passavam e ele parecia não ter se movido, voltava para trilha e continuava a minha caminhada, você não quer em nenhum momento deixar o sentimento de "parar um pouquinho" tomar conta de você, são em momentos assim, com esse inocente pensamento que montanhistas se entregam e ali ficam ate congelarem.
De repente, como que com hora marcada, o tempo vira, tudo fica branco, uma pequena nevasca se iniciava, alguns metros acima e já não se via muita coisa, o cume do Aconcágua havia sumido e dois dias depois eu tinha que estar lá, nestas condições seria impossível e eu começava a me perguntar se aquele era o inicio do fim. Como me sentia bem, a nevasca não me afetou muito e confiei na previsão do tempo para os próximos dias e segui forte até o destino, no inicio da tarde chegava ao Camp 2, Nido de Condores, 5.500 metros. Sabia que Marcelo iria demorar um pouco e ventava muito, eu não conseguiria montar minha barraca facilmente sozinho, então procurei um abrigo em uma rocha, comi algo pronto e fui ate uma barraca dos Rangers que existe neste acampamento, o ultimo que os helicópteros conseguem chegar e resgatar alguém se preciso. Eu havia tido um problema com minha sacola de, dejetos sólidos sabe? Temos que ter uma apenas para isso na parte alta da montanha, ela é numerada e você deve retornar ela ao acampamento base, ocorre que na estréia do meu banheiro sacola no Camp Canada uma rajada de vento a levou sem deixar vestígios, com os Rangers, eles disseram para não me preocupar, avisaram a base e trocamos 2 palavras entre elas a confiança de que daqui a 2 dias teríamos uma boa janela de tempo para o cume. Ao sair do abrigo deles o tempo estava péssimo, me preocupei com Marcelo e fui ate a ponta da subida mas não conseguia o avistar, me protegi numa pedra e descansei um pouco, ao longe podia ver uma barraca deslocada de todas as outras, num lugar com muito vento, era uma barraca laranja igual a do asiático do primeiro camp la embaixo, pensei, se for o mesmo cara, que dedo para escolher local.

Logo depois, Marcelo chegou, acampamos no mesmo local do outro ano, combinamos que um iria ajudar o outro a montar a barraca, ia diminuir bastante os esforços. Bastou começar a montar e a nevasca entrou de vez, muita neve que ao tocar qualquer coisa virava água, começavamos a nos molhar, o chão de terra começou a encharcar e não tínhamos escolha, montar as barracas o mais rápido possível e entrar. Me lembro muito bem, parecíamos pessoas recolhendo tudo as pressas debaixo da chuva para não deixar nada molhar, quando entrei na barraca, tirei a roupa úmida, entrei no saco e fechei, a sensação era igual aquela de entrar num carro quentinho num dia chuvoso, você grita caramba que frio, mas esta a salvo, que sentimento bom. No entanto, era crucial arrumar tudo, jantar e depois pensar em relaxar, por sorte, tínhamos água suficiente para passar a noite, então ficamos trancados o tempo todo conversando e rindo da loucura que estávamos fazendo em uma nevasca acampados a 5.500 metros. Chegou o fim do dia e o vento empenava ainda mais a minha barraca que já não tinha nada simétrico em seu formato, dessa vez comecei a me preocupar mais, na correria da montagem não me lembrava se havia ancorado ela bem com as pedras, e dessa vez decidi por sair do conforto e avaliar, pensei que se fosse mais tarde seria pior com a noite. Abri a porta da barraca e como quem toma um folego para dar um mergulho saí fazendo a vistoria rapidamente, fiz uns acertos e como estava bem protegido de casacos, me dei conta que não sentia frio, resolvi levantar a cabeça soltar o folego e me deixar sentir a força daquela nevasca. Era lindo ver ela cortando o acampamento, sacudindo tudo pelo caminho, ao longe nas montanhas era o por do sol e os poucos raios iluminavam a neve no ar, zero chances de pegar a máquina para registrar, muita logística, gravei aquelas imagens em minha mente. Ao longe, vejo a barraca que suspeitava ser do asiático, ele estava em pé, imóvel, fazendo o mesmo que eu, tive certeza de que era ele pela forma que ficava, gritei Marcelo, "bicho você não vai acreditar quem esta em pé do lado de fora da barraca viajando", aquele doido asiático", rimos um pouco e voltei para meu "carro quentinho". Bem ancorada, apesar de muito vento, a noite foi como a anterior, raios, ventos e sonos leves, estava tudo bem.

Dia 8. Desde a difícil noite anterior eu já mantinha um pensamento na cabeça, "faltam apenas 2 noites", contava noites porque a melhor parte do dia sem duvida era estar caminhando, ali você tinha um proposito, lutava fisicamente contra a montanha, enquanto que as noites eu me encolhia e quando acordava torcia para estar próximo da hora de levantar ao invés de ainda ter varias horas de "sono" pela frente, exatamente o oposto de como nos sentimos no conforto de nossas casas. Então acordei no dia 8 já com o pensamento, esta acabando, mais um noite pela frente, mais poucas refeiçoes liofilizadas e chega o momento de encarar o cume. Tomei café e fomos derreter neve para levar, não foi fácil, pegamos imensos blocos de neve com um saco improvisado, acabamos com nossas mãos todas molhadas mesmo com luvas mas tivemos uma boa surpresa, não foi tao demorado o processo de derreter e em quase 1 hora tínhamos 3 litros de água. Juntamos tudo e vamos subir. Em 2017 eu sai deste ponto às 2 horas da manha, a montanha totalmente no breu e seguia o ataque para o cume, Marcelo tinha dores de cabeça e ficou, lutei bravamente mas não dava, era impossível para um garoto da praia, do nível do mar, sair de casa e estar no cume de 6962 metros em apenas 7 dias. Foi interessante ver toda a parte do caminho que fiz a noite agora durante o dia, algo de novo começava a rolar. Fizemos nossa subida tranquila com tempo firme todo o tempo, tudo parecia estar certo. Andava num ritmo melhor e cheguei ao acampamento Berlim, reparei que não havia ninguém, a principio achei estranho, mas lembrei que todas as expedições usavam um acampamento próximo, a mesma altitude, o Colera, ali tomei a decisão de seguir para lá também, não iria ser teimoso a ponto de achar que poderia tomar uma decisão diferente da maioria. Marcelo não gostou muito da noticia no radio, ameaçou querer ficar mas expliquei que não seria sábio e consegui avistar ao longe ele vindo em minha direção. Mais quase uma hora e ele chegou, foi uma ótima decisão, o acampamento ficava protegido por pedras, estava cheio, nos sentíamos seguros, foi fácil montar a barraca, desta vez apenas uma, tínhamos deixado a minha montada em Nido de Condores com algum peso não necessário e também para servir de refugio quando voltássemos do cume no dia seguinte. Depois de conversar com alguns brasileiros que tinham uma barraca só para banheiro, fomos cumprimentar o outro vizinho, uma grata surpresa, nosso amigo asiático. Consegui descobri que ele era do Japão, disse que estive no seu país, em varias montanhas, mais uma vez recebi a resposta que ele mesmo não havia estado la ainda mas foi muito bacana o conhecer, o admirei por estar ali sozinho. A verdade é que estávamos muito bem, arrumamos nossas coisas, comemos, tudo estava calmo, a ausência da nevasca e de quase a totalidade de vento trazia uma calmaria ao acampamento, um conforto. Pude aproveitar o por do sol e pensar, "acabou, é a ultima noite e daqui a pouco sigo minha escalada a um resultado desconhecido".

Dia 9! CUME! Na noite anterior, combinei com Marcelo que ele acordaria 1 hora antes de mim, tomaria seu cafe e sairia no mesmo horário das expedições, eu iria depois, um pouco mais rápido, a logística dos dois se arrumando na mesma barraca seria complicado. Ele acordou no horário dele, eu acordei junto, óbvio, e pude bater um papo, desejar força! Quando ele saiu da barraca não preguei o olho, mas fiquei ali no quentinho em silencio não com sentimento de medo ou preguiça de ter que sair daquele conforto, mas tentando adivinhar em inúmeros cenários o que me esperava para aquele dia, o que eu poderia controlar naquelas próximas horas, me lembro de em nenhum momento sentir medo de fracasso, preferi lembrar tudo que já tínhamos passado, e passado bem, Marcelo já estava a 6.000 metros, um feito inédito para ele e resolvi me convencer que se não tivéssemos cume, estaríamos felizes.
Tomei meu cafe e hora de partir, era 05:26 da manha e quando saí da barraca a noite estava linda, o céu tinha estrelas como se pode ver numa fazendo isolada ou num barco em alto mar, estava muito longe da civilização, para uma missão que dependia apenas de mim e da permissão da montanha. Tomei meu folego e iniciei a subida. O inicio era um zig zag em terreno fácil e percebi que cometi um erro em sair tarde, ultrapassar as lentas expedições de 10-15 pessoas era penoso e me exigia explosões de esforço, me preocupava se iria pagar aquilo mais tarde mas ao mesmo tempo não queria perder tempo, porque sei que poderia precisar dele mais tarde, com isso ia andando com algum desconforto, bebia pouca água e sentia muito, muito frio nas pontas dos dedos. Acelerar o ritmo ajudava um pouco mas começava a me preocupar, meu único conforto era pensar que naquela altitude e durante apenas algumas horas de exposição meus dedos não iriam iniciar processo de congelamento, não iria perder eles mais tarde, comecei a massagea-los e segui em frente.
Todas as lanternas a minha frente apontavam para o cume, e eu passava elas como se estivesse em uma prova, quando de repente umas das luzes vinha na direção contrária, era Marcelo, cheguei a ter que esbarrar nele para pararmos e trocarmos umas palavras, "o que houve?" eu logo perguntei, e apenas um "não da pra mim, estou com muito frio" foi o que pude ouvir, ele queria descer e eu precisava subir, não dava para ser diferente, não dava para raciocinar, ele havia tomado sua decisão e tudo que ele buscava era sua sobrevivência, eu continuei minha subida e alguns passos depois realizei o que havia acontecido, não faríamos o cume juntos, fiquei com raiva de Marcelo, queria muito que ele conseguisse, não me desanimou, mas lembro de ter ficado com raiva que não estaríamos juntos, na mesma hora também lembrei que a decisão mais sabia que se pode tomar na montanha é desistir e retornar, eu havia passado por isso tao próximo do cume e também nem sabia se o teria que fazer de novo, poderia dar alguns passos e ter que retornar também, então, compreendi e comecei a escalada agora carregando nos dois.
Segui no ritmo passando as expedições e cheguei ao ponto onde começava a neve e os trechos difíceis acima de 6500 metros com apenas alguns montanhistas, paramos em um antigo abrigo de madeira do tamanho de uma casa de cachorro e colocamos os crampones, já tinha 3 horas de caminhada, eram quase 9 da manha e finalmente os primeiros raios de sol conseguiam vencer a altura das primeiras montanhas mais baixas no horizonte da cordilheira dos andes e ganhar altura para me alcançar. Foi incrível a energia que senti, lembrei novamente de Marcelo e do ano de 2017, tudo estava bem. Neste momento você volta para a face leste do Aconcágua e perde-se a luz do sol novamente, iria passar pela Travessia, um trecho difícil de explicar, uma trilha estreita pouco íngreme comparado com o resto do trajeto mas é como caminhar no alto de uma duna, são poucas as grandes pedras e um deslize ali pode fazer você cair, ganhar velocidade e sabe-se la onde vai parar, mas o perigo não preocupa, é seguro, o pior ainda esta por vir. No caso eu pensava que era o resto do caminho, mas não, foi uma mudança no clima. Me lembro de estar no meio da Travessia, totalmente exposto sem nenhuma grande pedra bloqueando algo, a 6.600 metros e de repente olhar para a minha direita e no horizonte ver um imenso céu negro, dali se podia avistar o Cerro Bonete, mas em segundos ele foi engolido por nuvens escuras que vinham em minha direção, não parecia um fenômeno natural, parecia que o cume do Aconcágua as atraía como imãs e eu estava no meio do caminho. Não demorou nem 2 minutos e as nuvens se deslocaram quilômetros e já tomaram conta de tudo, a temperatura baixou bruscamente, toda a minha roupa congelou, aonde havia um minimo de umidade agora eram flocos de gelo, a visibilidade sumiu, eu já não podia ver o fim da Travessia, comecei a chacoalhar de frio, e o pensamento me encheu de forma fulminante "será? sera que acabou? será que vou ter que retornar?"
Olhei para frente e consegui avistar um montanhista a uns 30 metros, ele seguia em frente, olhei para trás e havia outro na mesma distancia, ele me observava parado, pensei "se ele esta indo eu vou também", coloquei o passo a frente e comecei a vencer aquela escuridão. O frio era difícil de explicar,  não ventava muito, ainda bem, senão penso que seria impossível, caminhei por mais 1 hora e cheguei a La Cueva a 6700 metros.
La Cueva, neste lugar cheguei cansado em 2017, mas ao sentar para me alimentar pude realizar que estava já exausto, me lembro que tomava as batatas Pringles e as levava a boca, de repente acordava como quem estava morrendo de sono e levava outra leva de batatas a boca, 5 minutos pareciam haver se passado, mas quando vi estava ha uns 40 minutos naquela situação e não havia comido nada, a cada viagem da mão ate a boca com as batatas eu adormecia e acordava minutos depois, quando levantei e senti meu corpo fraco e pesado tomei a decisão de voltar. Este ano a situação era diferente, a mente estava boa, havia tomado uma decisão de continuar mas o frio estava me vencendo, quando sentei na Cueva não podia raciocinar tamanho era o frio, me veio um sentimento muito interessante, eu sofria muito, nunca havia passado por uma situação daquela, mas estava gostando, estava gostando que estava extremo, eu estava seguro que o frio nao ia me impedir, me sentia bem, imediatamente me vieram à mente as situações lidas no livro do Shackleton nos dias de descanso do acampamento base, o frio extremo, comecei a dar porradas nas minhas pernas e no meu peito, mexia minha mãos e dedos vigorosamente, em meio a todo esse movimento descoordenado e desesperado pegava algo na mochila para comer e beber. Uns 15 minutos se passara, consegui me alimentar e hidratar um pouco, tirar ou não a luva para mexer melhor na mochila era uma decisão dificil, quanto tirei nao sentia tanto frio com as mãos descobertas, fiquei preocupado, podia ser o início de um processo de congelamento onde já não sentia as mãos. Mas, estava pronto para seguir em frente, e como se fosse um teste, no primeiro passo adiante da mesma forma que chegou, as nuvens negras se dissiparam quase que totalmente e como se abrissem as portas para o cume a próxima parte do desafio se mostrava, a Canaleta.
A Canaleta é uma "parede" que fica encoberta pela pedra que forma a Cueva, dessa forma fica a maior parte do dia na sombra e por isso está sempre coberta de gelo, eram 10:30 da manha e a parede de neve brilhava agora com o sol, me senti seguro de poder enxergar tudo que me esperava, me sentia bem fisicamente, até então as dificuldades que enfrentava era a montanha que me oferecia. Iniciei então a subida, 3 passos dados e tentava achar uma forma de subir tamanha inclinação com aquelas botas gigantes sem dobrar o tornozelo. De repente algo estava mal, a inclinação era tanta que meus crampones começavam a se soltar das botas, não me importei, a Canaleta era muito curta, porem, mais uns 10 passos acima e estavam totalmente soltos. Me senti frustrado, realizei que ia ter que parar e resolver o problema. De alguma maneira consegui sentar em uma inclinação de neve de uns 30% e analisar as amarras, apertei bem todas e voltei a subir, 10 passos mais e tudo solto novamente, comecei a entrar num espiral de desespero, se aquilo ia me impedir de seguir em frente, mas ainda estava com boa consciência, parei novamente e pensei que tinha que tirar o equipamento, analisar com calma e mesmo que demorasse, resolver o problema de vez, não poderia seguir dando 10 passos e parando novamente, aquilo iria me derrotar mentalmente. Foram uns 30 minutos entre a primeira parada e a final, mas o problema estava resolvido, pude levantar e depender apenas de mim novamente, foi como ter olhado para montanha e falado "estou de volta ao jogo".
Vencida a Canaleta, eu estava a uns 6800 metros, quase 6 horas de subida e poucos metros me separavam do cume, mas tudo só acaba quando termina. Esse trecho é praticamente já a crista da montanha, um emaranhado de enormes pedras que pouco te deixa espaço para por o pé, foi neste exato trecho que a montanha começou a fazer sua parte. A sensação é simplesmente indescritível, de repente uma forca parece alterar a relatividade das distâncias, do tempo, da altitude, qualquer 5 metros de distancia, 5 passos a frente, pareciam levar uma eternidade e incontáveis movimentos de respiração. A essa altitude você já tem 20% do oxigênio comparado ao nível do mar, qualquer coisa até mesmo se manter vivo e respirar é desgastante não só fisicamente, mas mentalmente, principalmente. É como se o cérebro no comando não entendesse o que esta acontecendo com o resto do corpo, como se ele mandasse o comando de acelerar, de dar uma passada mais longa e isso não ocorresse. Nessa hora eu dava alguns passos, levantava a cabeça e avistava o cume, era péssimo, cada vez que eu fazia esse ciclo eu podia jurar que não havia me movido nem 1 metro. Depois de muito sofrer naquela situação comecei a pensar em parar, descansar e melhorar um pouco para fazer o final em melhor condições, mas aí me veio na hora o ensinamento do "eu só vou parar um pouquinho", e ali fica eternamente", pensei, vou caminhar sem mais olhar para o cume. Não sei qual seria a decisão correta, talvez pelo horário e me sentindo bem, parar um pouco teria me relaxado, sei que nesse momento os sentimentos mudavam um pouco em minha cabeça, eu sabia que ia chegar ao cume e aquilo já não me enchia de felicidade, o sofrimento era tanto que começou a perder um pouco o sentido. Sempre quando estamos sofrendo seja em provas, seja em desafios, nos lembramos dos amigos que não entendem o porque fazemos isso, sempre senti pena deles por eles nunca terem experimentado a sensação, mas no momento eu dava um pouco de razão a eles, não conseguia curtir o momento, coloquei a cabeça pra baixo e caminhei, só parei quando vi as grandes pedras empilhadas, sabia que eram as que tinha que subir em uns 3 lances para chegar ao cume.
Olhei para cima e la estava, 3 passadas largas e o platô do cume do Colosso das Américas, o primeiro sentimento foi sem dúvida de alívio, não só de ter conquistado, mas de saber que não precisaria mais voltar ali, a missão estava cumprida. No momento seguinte comecei a me preocupar que estava cansado e que tinha que voltar todo o caminho. Em seguida a avalanche de pensamentos foi se acalmando, comecei a olhar em volta, no horizonte, podia reparar na curvatura da Terra, saquei minha câmera, pedi uma foto do cume e em seguida comecei a fazer vídeos. Foi neste momento que comecei a realizar aonde estava e o que havia feito, era quase 1 hora da tarde, um domingo e não pude evitar um pensamento de o almoço está servido, a família à mesa, as lágrimas vieram instantaneamente. De casa, eu sabia que eles estavam me observando através do localizador, eles sabiam o que eu havia acabado de conquistar, era como se eu pudesse por um instante sentar à mesa, levantar uma taça e brindar com eles. Um pouco de paz, uns sorrisos, um balanco dos pensamentos, de tudo que havia passado, não só neste ano mas muito mais do que passei em 2017, o aprendizado, o auto conhecimento, o orgulho do plano ter dado certo, a certeza de que eu desceria a montanha uma nova pessoa, foram muitos os sentimentos e muito curiosamente, todos eles esperados, você precisa passar por isso para se transformar, mas era como eu esperava, a verdade é que as sensações são muitas e muito complicadas de absorver, então acho que só quando fui precisar delas no dia a dia posteriormente, realizei que o aprendizado havia sido concluído. Obrigado Aconcágua pela segunda chance!